06 maio, 2010

Maria no espelho



  
(Image by Jessica Ojala)


Maria espera a visita de um homem. Maria olha-se no espelho. Maria vira-se, para olhar suas pernas por trás. Maria pensa: “Ihhh aquela mancha roxa continua ali”. Será que ele vai ver? Só se olhar de perto. E ele não vai chegar perto. Com a minha sorte ele não vai chegar nem perto. Oito e meia. Ele já deve estar chegando. Pode me dizer por que você está de vestido? Preto? Apertado? Vai ser um jantar íntimo, aqui mesmo. Ele vem de jeans e camiseta. Ele só usa jeans e camiseta. Deve dormir de jeans e camiseta. Você está linda. Gostosa. Tesão! Muita pintura. Eu pareço uma palhaça. Ele não vai me reconhecer. De pretinho e de baton, vai pensar que errou de apartamento. "Desculpe, eu estou procurando a Mariazinha, minha colega de trabalho, muito sem gracinha". "Não, sou eu mesma, pode entrar". "Você não pode ser a Mariazinha, a Mariazinha que eu conheço não tem pernas". "Tem sim senhor, o senhor é que não tinha notado. E não só pernas. Bunda também". "Bunda também?! Não pode ser a Mariazinha que eu...". Barulho do elevador. É ele! Não é ele.

Este homem não vem? Eu disse oito e meia. Meus brócolis vão murchar. Eu vou murchar. O molho pros brócolis! Esqueci! Não esqueci. Já fiz. Ele não deve gostar de brócolis. Nem sabe o que é. Eu é que não sei nada sobre ele. Quatro meses trabalhando juntos e eu não sei nada sobre ele. Pode ser um tarado. Você não sabe o que o espera rapaz. Experiências novas. Excitantes. Brócolis. Com molho! É ele! Não é ele. Se atrasou. Se perdeu. Desistiu. Também, que idéia. Jantarzinho íntimo. A primeira vez que a gente vai se ver fora do escritório e eu já convido pra vir na minha casa.

Deve estar pensando que eu não quero perder tempo. "Boa noite. Boa noite. Trouxe a camisinha?". Eu devo estar louca. Jantarzinho íntimo. Velas na mesa. Ele é capaz de comer as velas. Vou mudar de roupa. Me vestir de Mariazinha de novo. Não vai dar tempo. Que livro eu botei na mesa de centro pra ele ver que, além de bunda, eu tenho cultura? Já esqueci. Meu Deus não pode ser Paulo Coelho. Vou botar aquele dos santos barrocos de Minas Gerais, que eu ainda não abri. As velas na mesa saem. Está pensando que isso é um filme? Na vida real não tem vela na mesa. É ele! Não é ele.

Ai meu Deus. Vamos nos organizar. Que impressão eu quero dar? Ele entra e descobre... o quê? Primeira coisa: eu não sou a Mariazinha que ele pensa. A Mariazinha que ele vê no escritório é um disfarce. Eu sou... Mariá. Acento no "a". Uma mulher complexa, vital, multifacetada. Grandes pernas, grande cabeça. No trabalho é uma eficiente, discreta, algo contida. Em casa é outra: feminina, interessante. Folheia livros sobre o barroco mineiro, uma de suas paixões. As outras são balé aquático e física quântica. Experimenta com molhos. Sua pasta de dentes é “Crest”, comprada numa pequena farmácia do Village que ninguém conhece. A marca das suas calcinhas? Não usa calcinha. O lugar mais esquisito onde já fez amor foi o confessionário de uma igreja. Barroca. Mineira. Com o padre, só para ter o que confessar. “O quê? Você, o primeiro homem a entrar nesse apartamento que não veio consertar a válvula do banheiro? Ora não me faça rir. Tenho homens para jantar todas as noites e guardo seus ossos para chupar no almoço. Meu caro”. Vou mudar de roupa. Camiseta e calça solta. Afinal, foi a Mariazinha que convidou ele pra jantar e não a Mariá. É preciso um toque de desordem. O barroco mineiro jogado, assim, displicentemente, como se eu estivesse folheando assim que ele chegou. Jogado no chão, é melhor. Se não fica tudo muito certinho. Se não ele entra e pensa “Iiih tudo muito certinho, ela deve ser neurótica por limpeza e provavelmente frígida”. Esta tudo muito no lugar. Acho que vou entortar um quadro. Que mais?

A música! Esqueci a música. Ele entra e está tocando o quê? O coro das mulheres búlgaras. Não, coitado, ele vai se sentir intimidado. Eu de pernas de fora e búlgaras cantando. Búlgaras e brócolis, ele é capaz de sair correndo. Maria Bethânia cantando Roberto Carlos. Sei não, pode dar uma idéia errada. A Mariazinha escolheria Roberto. A Mariá escolhe Phillip Glass. Não, tá doida. Os três tenores. Também não. Keith Jarret. Não. Não tem música. Até a noite se definir. Por que tem noites que vão naturalmente para Frank Sinatra com violinos e noites que vão para Neguinho da Beija Flor. Noites que acabam em Wagner e noites que acabam em Fagner. Se bem que as minhas noites geralmente acabam em Jô Soares Onze e Meia... dependendo de como for a noite, mais tarde coloco alguma coisa pra gente dançar. “Sabe Mariá? você me surpreendeu...”. “Ah, sim?”. “Sim. Eu não sabia que você era uma mulher assim tão (pausa) multifacetada...”. “E isso que você não viu todas as minhas (pausa) facetas. E se não chegar logo não vai ver nenhuma”. Se ele começar a ficar muito chato, eu ponho as búlgaras muito alto e corro com ele. Vou deixar a pintura como está. O vestido também. A mancha roxa também. Afinal, quem é você, hein Maria?

Mariazinha ou Mariá? Quem convidou ele pra jantar foi a Mariazinha do escritório. Ele chega esperando encontrar a Mariazinha e encontra uma mulher. Uma estranha mulher de preto. Troco de roupa ou não troco de roupa. Ele deve estar chegando.

Decisão rápida quem abre a porta? Mariazinha ou Mariá? Ai meu Deus, Mariazinha ou Mariá? Eu posso estar decidindo meu futuro. Este pode ser o momento mais importante da minha vida. A campanhinha! É ele, e agora? Posso ser a Mariazinha hoje e deixar a Mariá para quando ele vier outra vez. E se ele não vier outra vez? Pode se decepcionar com a Mariazinha e depois a Mariá não terá outra chance. Mas se eu for a Mariá de saída pode estragar tudo. Ele pode se assustar, eu posso ser Mariá demais pra ele. Eu posso começar Mariazinha e depois terminar Mariá. Não. Vai deixar ele confuso.

Mariazinha ou Mariá, alguém tem que abrir essa porta!

Par ou ímpar? Que bobagem. Uni, duni, tê, quem vai abrir a porta é – você! Mas quem é você? Vou tirar o vestido. Isso. Abro a porta nua, digo que ainda não acabei de me vestir e venho para o quarto decidir quem sou eu. Quantos passos serão daqui até a porta? Se eu der um passo de Mariazinha e um passo de Maria até a porta, quem chegar na porta ganha.

Se quem chegar na porta for a Mariá, ela já tira o vestido e elimina várias etapas. Antes mesmo do brócolis. Até que enfim uma solução racional. Lá vou eu, Mariazinha, Mariá, Mariazinha, Mariá, Mariazinha...

Luiz Fernando Veríssimo

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